quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Fantástico, esperteza e cultura

O programa Fantástico da Rede Globo de Televisão, no domingo, dia 19/12, apresentou matéria com um rapper e suas peripécias pela falta de acessibilidade quando da utilização de transportes públicos como trem, ônibus e aviões. Aqui mesmo, em meu blog, no texto com o título educação, OLIMPÍADA , COPA DO MUNDO E EDUCAÇÃO, relatei episódio idêntico ocorrido no aeroporto de Brasília-DF. Cabe ainda acrescentar à matéria que, além do risco que representa subir ou descer escadas com algum deficiente no colo, existe o lado do constrangimento. Respeito, mas não é meu caso. Estou me lixando para ser ou não carregado no colo. Desde que a ou as criaturas tenham força para carregar meu peso. Naquele aeroporto por exemplo, os despachantes da TAM, comandados pela brilhante chefe de cabine Catia Simone, colaboraram na transferência até o banco da aeronave. Mas sei de muita gente que não gosta. Por vários motivos, entre os quais, machismo, vergonha, falta de segurança e cidadania, afinal, acessibilidade é sinônimo de independência.
Sou usuário frequente dos mais diversos meios de transporte. Em quase todos eles presencio conflitos. Tenho notado muito difícil conseguir um táxi para cadeirantes. Com o uso dos tubos de gás combustível no local onde deveriam acomodar as malas e bagagens, os motoristas se recusam a carregar a cadeira no banco traseiro. Aqui em Porto Alegre existe um veículo especial, cuja tarifa é a mesma cobrada pelos demais. Mas trabalha com hora marcada, o que inibe o usuário em suas atividades. Já nos ônibus, com a entrada em circulação de diversos veículos novos adaptados, nem mesmo consulta de horários via WEB ando precisando. STS, UNIBUS, CARRIS e CONORTE apresentam serviço de ótima qualidade. E os conflitos? Ah, em certa linha que atende a zona sul da cidade, existe uma deficiente que simplesmente se recusa a andar no veículo na forma correta, de frente para o trânsito. Prefere colocar a cadeira na posição lateral, aumentando em muito o risco de acidentes, em virtude da proximidade da porta de desembarque. Conflito com motorista e cobrador. Soube que outro dia foi convidada a retirar-se do veículo. Comigo mesmo, dias atrás, na mesma linha do ônibus, uma passageira recusou-se a sair do banco destinado às pessoas com deficiência. Novo conflito.

Esperteza
Dia desses, quando ia para casa, me deparei com ônibus de empresa que atende o litoral norte do estado do RGS, com símbolo internacional de acesso para deficientes. Procurei pela porta ou elevador. Nada. Sai de casa novamente e encontrei van com o mesmo símbolo, destas que efetua transporte de alunos de faculdade. Igualmente, não possuía elevador ou porta de acesso.
Loucura do Natal, fui para a rodoviária rumo ao litoral norte. Lá chegando, coisa de quinze minutos antes do horário do embarque, observei que diversas empresas como a Unesul, Planalto, Viação Santa Cruz, Palmares, entre outras, utilizam o mesmo expediente, para diversos destinos. Um ônibus parado no box. Não consegui me controlar. Fui até o motorista e perguntei como faria, pois precisava embarcar naquele veículo. Disse ele que sem problemas, seria carregado no colo desde que conseguisse um colega para ajudar. Mas e o símbolo, perguntei. Apenas abriu os braços como quem dissesse: “ que posso fazer...”
Voltei para o box onde realmente embarcaria. Bah, pensei eu. Pelo menos esse não tem o símbolo. Mas não foi diferente. Embarquei no colo dos dois funcionários, em uma porta absolutamente estreita, com extrema dificuldade. Aliás, se não ajudo retirando o excesso de peso para eles, talvez tivesse caído. Legal, dentro do ônibus, bancos dianteiros. Olho para frente, o fone de reclamações da agência reguladora dos transportes do RGS, a AGERGS, devidamente acompanhado do slogan da entidade: “A AGERGS ESTÁ SEMPRE DE OLHO”. Ah, agora entendi. A AGERGS possui deficiência visual.
De acordo com a NBR 9050 da ABNT-Associação Brasileira de Normas Técnicas diz que a indicação de acessibilidade dos edifícios, móveis, espaços e equipamentos urbanos deve ser feita através de símbolo internacional de acesso. Consiste em um pictograma ( representação através de desenho ) branco sobre fundo azul. Não são permitidas alterações ou adições neste símbolo. A figura deve estar voltada sempre para a direita. O símbolo serve para identificar acesso aos espaços e serviços utilizáveis por pessoas com mobilidade reduzida, SEM ASSISTÊNCIA. Precisa ser afixada em local visível ao grande público como entradas, estacionamentos, sanitários entre outros.
O símbolo nunca deverá ser usado para nenhum propósito que não seja o de identificar, assinalar ou indicar o caminho para locais acessíveis às pessoas cuja mobilidade esteja limitada por deficiência SEM ASSISTÊNCIA. Os padrões de acessibilidade a serem seguidos deverão ser estabelecidos pelas autoridades competentes de cada país e recomenda-se que estas observem as recomendações da reunião de peritos da ONU sobre arquitetura sem barreiras, realizada em 1974. O relatório e as recomendações dessa reunião foram publicados e tornados disponíveis pela Rehabilitation International.
O que me incomoda não é o fato de ser carregado. É a velha mania de esperteza dos empresários, com a conivência da AGERGS, colocando um símbolo de acessibilidade que indica facilidade e não o risco de ser carregado. Puxa vida. Ato falho. Para que a AGERGS pudesse ler tal reclamação o texto deveria ser em braile.

EPISÓDIOS CULTURAIS
Dia desses, ao retornar do almoço, fui surpreendido por um senhor dos seus sessenta anos, me oferecendo uma moeda.
Saindo do restaurante onde almoço, em virtude da péssima condição de trafegabilidade pela calçada, utilizo o canto da rua, pelo asfalto. Ao cruzar na sinaleira, quase sempre observo os vidros dos veículos sendo erguidos de forma automática. Será que tenho cara de pedinte?
Em um banco no centro de Porto Alegre, a funcionária perguntou se conseguiria ou não escrever e assinar a atualização cadastral.
No transporte coletivo, diversas vezes me ofereço para segurar pacotes das pessoas. Muitos, ainda que a distância percorrida seja enorme e os pacotes notadamente pesados, respondem com o velho “não precisa”.
Não entro na paranóia do preconceito. Longe de mim. Acho até engraçado.Tais episódios, em minha opinião, representam uma questão cultural. Ainda somos vistos como seres diferentes. A novela da Globo, através da personagem Luciana, trouxe a palavra inclusão para a mídia. Mas ainda considero um modismo, sem nenhum significado social. Sem dúvida, a relação entre a sociedade e os deficientes vem sendo modificada, mas com passos muito lentos. Trata-se de elemento histórico. No Corão por exemplo, Mohammed sugere que os desprovidos de razão sejam tratados com amabilidade. Os romanos e espartanos eliminavam os fracos e defeituosos. A evolução das relações começa a partir dos avanços da medicina, sempre ela, disponibilizando a melhoria das condições de vida e aproximando-as dos padrões daqueles ditos “normais”. Já é problema cultural, o simples fato de considerar extraordinário deficientes que alcançaram seus objetivos, quer pessoais ou profissionais. Ainda existe gente como narrei nos episódios acima que desqualificam o deficiente apenas pela limitação. A real inclusão dos deficientes somente se dará quando a própria sociedade, através da cultura, transformar-se em uma sociedade realmente democrática. E a conquista deste espaço, depende do abandono do discurso e da adoção de ações efetivas.